Citando Carlos Ganhão:
A propósito de quedas de Unimog e conforme promessa feita há dias, vou contar-vos um episódio ocorrido em finais de 1969 no itinerário Zala - Nambuangongo - Zala. Para isso vou-me limitar a fazer "copy paste" do meu próprio livro.
" No regresso de um período de protecção à Engenharia, é-nos dada uma missão logo para o dia seguinte: ir a Nambuangongo fazer entrega de documentos.
Saímos de madrugada, ainda o dia não tinha nascido.
Como a viagem se prevê rápida e estamos a sair muito cedo, apenas há para distribuir ao pessoal uma caneca de café quente Não é distribuída qualquer ração de combate.
A coluna é formada por três viaturas Unimogs diesel, que na gíria são chamadas burrinhos e transportam uma secção a sete homens cada uma.
No trajecto de ida, uma delas avaria e logo no local há muito famoso para emboscadas, conhecido pela “ Mata do Café ”, há necessidade de ser rebocado por outra até ao P.A.D. (pelotão de apoio directo) em Nambuangongo.
Enquanto a avaria se resolve, o tempo vai passando e o pessoal começa a dar sinais de alguma fraqueza, pois ninguém comera nada desde o jantar do dia anterior. O alferes Cirilo, dada a sua inexperiência, não permitiu o pedido de empréstimo de umas rações de combate. Eu bem o quis fazer, mas ele desaconselhou-me, pois dizia poder trazer problemas com o nosso capitão Lobo.
Acho que a questão era fácil de solucionar. Pediam-se emprestadas umas quantas rações de combate e, na visita seguinte, nós ou outros, devolveríamos a mesma quantidade. Mas não quis!
Claro que o meu problema está resolvido. Por mero acaso levava dinheiro e na companhia dos cabos Cabeleira e Nabeiro vamos comer umas sandes e beber umas cervejas ao cantineiro civil. Um ou outro soldado também se desenrasca. A maioria, essa, fica a olhar para o ar; não come nada a não ser pó.
Já perto da uma da tarde é-nos entregue o carro e assim iniciamos a viagem de regresso a Zala, fazendo uma paragem demorada no destacamento da Madureira porque a viatura reparada está a perder muita água. No final do trajecto mais um percalço: um pneu furado, no “burrinho” do meio.
Há que fazer nova paragem. O pessoal é todo apeado e distribuído em linha dos dois lados da picada para segurança à mudança do pneu. Os condutores, também com pouca experiência, levam um tempão naquela operação e ainda por cima o pneu suplente está com falta de ar. Há que bombear ar à mão.
Finalmente está tudo pronto, vamos embora!
Decorridos uns vinte minutos, meia hora, começa a ouvir-se uma gritaria e apitadelas vindas da última viatura. A coluna pára.
- O que é que se passa? – pergunta o alferes Cirilo que vai no segundo carro.
- Qual é o problema? – pergunto eu que vou no primeiro.
- Foi o “Olhinhos” que, enquanto estivemos parados, sentou-se na berma da picada e tirou o cinturão com as cartucheiras, granadas e cantil de água para descansar do peso e esqueceu-se de o apanhar quando subimos – responde o cabo Silva.
- Isto é que é uma porra! Agora por causa desse gajo temos que voltar para trás. Se calhar os “turras” já lá chegaram e já apanharam o material. Temos que voltar atrás forçosamente! – resmunga o oficial.
- Ok, vamos fazer inversão de marcha. Esperemos é que se encontre o material, senão estás bem lixado – digo ao Olhinhos.
O soldado está pálido.
Após o início da marcha, o soldado Lourenço põe-se de pé na viatura e começa a urinar para a picada. Com a deslocação do ar, os outros que estão a seu lado na fila terão sido salpicados com uns pingos de urina e começam a barafustar com razão. Através do retrovisor observo o despudor daquele indivíduo. Enquanto uns riem, outros não acham graça nenhuma àquela atitude. Apesar das reclamações, o tipo continua a esvaziar a bexiga. Então puxo da G3 e faço uma rajada para o ar, o que obrigou a coluna a parar de emergência e a malta ir toda para o chão, pensando que fosse uma emboscada.
O Lourenço está metido na valeta ainda com a braguilha aberta, quando me dirijo a ele:
- Se voltas a repetir essa gracinha levas um balázio na gaita, para ver se aprendes a respeitar os teus colegas.
- Peço desculpa, meu furriel, mas estava à rasca.
- Paraste lá atrás há uns minutos e não viste que estavas aflito?
- Só agora é que me deu o aperto.
- Estás avisado!
Entretanto o oficial, que também tinha ido de cara ao chão, chegou ao pé de nós e, depois de se inteirar do ocorrido, pôs-se a rir às gargalhadas. Lá terá achado graça!...
Após retomarmos a marcha, num instante chegamos ao local. O Olhinhos vai directo ao sítio onde tinha estado sentado e logo encontra o cinturão com todo o material. Sorte a dele!
Nova inversão das viaturas e retoma da marcha.
São cerca das dezassete horas quando finalmente se vêem as edificações do quartel de Zala.
Uns minutos depois, iniciamos a subida para a porta de armas. É bastante acentuada e com uma curva à direita.
De repente ouvem-se gritos, muitos gritos! A coluna pára.
Um homem está deitado no chão, de bruços.
- O que foi?
- Um homem vinha a dormir, na curva caiu e bateu com a cabeça no chão – responde o cabo Silva
- E já está morto! – acrescenta o soldado Vieira de seguida.
Quando chego junto do soldado caído no chão da picada, ainda lhe sai por um dos ouvidos um pequeno fio de sangue.
À semelhança dos restantes, este soldado passou desde madrugada, o dia inteiro sem comer o que lhe provocou alguma fraqueza e sonolência. Adormeceu e na curva, tombou.
“Traumatismo craniano” – é o diagnóstico. Ainda se pede evacuação imediata ao Sector, mas nada há a fazer; o homem já é cadáver.
São quatro e meia da tarde do dia dezanove de Dezembro de mil novecentos e setenta. É´ a primeira baixa e sem ser em combate.
Era um soldado atirador, de seu nome, Joaquim Cupertino.
Nessa noite o corpo é colocado na capela para ser velado. Junto a ele e durante toda a noite mantém-se o seu grupo, desperto e coeso, que se vai revezando para que o colega esteja sempre acompanhado.
No dia seguinte chega um soldado do comando de sector de Santa Eulália que executa todos os trabalhos conducentes à soldadura da urna, a qual é colocada em seguida dentro de um caixote feito em tabuado, ficando nesse dia e na noite seguinte na capela, velado pelos seus companheiros.
Esta atitude não é de agrado do comandante que nos revela pela primeira vez o seu carácter. Dá ordem para que o caixote seja metido numa arrecadação junto de outros materiais e em voz alta, perante um grupo de soldados que se encontra perto da capela, diz: – “ Desses há lá muitos para virem para cá; morre um, vêm dez. O batalhão já tem demasiadas preocupações com a vida, para se dar ao luxo de perder tempo com a morte”.
Psicologicamente é uma atitude demolidora e altamente desmoralizante para todos.
É a atitude de um canalha. Um pulhastro, diria mesmo.
Que incómodo lhe causa aquela demonstração de dor e sofrimento?
Oito dias depois, a urna segue para Luanda numa coluna de reabastecimentos, mas a acção do comandante despertou em mim uma atitude de desprezo. Mostrou-se um canalha. "