"maria Das Dores" - Split Panel Van 1962

Hugo Freitas Pereira

Portalista
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Olá a todos.

Venho por este meio apresentar-me a este fórum, que já tinha ouvido falar há algum tempo.

Chamo-me "Maria das Dores" e sou uma panel van. Nasci em Hanover, a 4 de Maio de 1962.
Na linha de montagem colocaram-me o meu "B.I.", onde constava que iria ser uma carrinha de carga, branca e com destino um país chamado Portugal, mais concretamente para um local "Odivelas".
Ainda me lembro de um funcionário da fábrica dizer a outro: "Nein! Não leva bateria, não vês o código 008?"
"-E os vidros safari? Para que são então?"- questionou um outro baralhado.
"-Ela vai para Portugal, um país quente. São de série... Pela cor às tantas ainda acaba como ambulância."

Ouvi isto meia assustada, meia contente. Pelo menos ia viajar, conhecer outro país...

Sinceramente não me lembro muito bem dos meus primeiros anos de vida... Apenas de me pintarem de verde, depois de um amarelo berrante e finalmente, com 5 anos de idade meteram-me num barco, rumo a uma ilha chamada Madeira.

Aí fui servir uma empresa de venda de peixe seco... e dormia ao relento, próximo a uma capela e da casa dos meus donos.
Numa noite, assustei-me, pois abriram-me a porta e entraram duas pessoas que não os meus donos...
Eram um casal de namorados... a situação voltou-se a repetir daí para a frente inúmeras vezes...
Início dos anos 80s, foi oferecida a um senhor, que por sua vez vendeu-me a uma oficina.
Aí fui mantida como carrinha de assistência e fui sujeita a uma nova pintura. Desta feita um amarelo mais claro e discreto. Um dos meus novos donos, decidiu transformara-me em carrinha de campismo.
Fez uns móveis no meu interior, colocou-me o meu pneu sobresselente pendurado á frente, e ao fim de semana ia passear pela ilha comigo e com a sua mulher. Nos outros dias, acartava motores e caixas e tudo o que lhes dava na cabeça... Comecei a sentir o meu fundo a curvar com o peso... e a minha idade também não perdoava já...

Vieram os anos 90s... e com eles cada vez mais as carrinhas a gasóleo... mais económicas e novas... e eu fui vendida...

Realmente nesta fase já não estava muito charmosa... os meus vidros safari foram desmontados... julgo que estavam podres e metiam água... Os meus pratos há muito que tinham caído, pois o cuidado ao me conduzirem já era pouco... enfim... era já uma carrinha velha para eles...

Estive na posse de várias pessoas, que sinceramente preferi esquecer... Pintaram-me de rolo uma cruz branca em cada lado e após diversas noites de bebedeira, deixaram-me abandonada num canto da estrada...

Alguém encontrou-me e levou-me para uma garagem com outros VWs... Mais tarde esse alguém trocou-me por um carocha...

O meu novo dono decidiu que a minha frente ainda não estava suficientemente amolgada e decidiu esmurrar-me num outro carro... Fiquei cega do meu olho direito nesse dia... e a partir daí fiquei encostada num canto dum quintal durante uns tempos...

No início deste século, outro "alguém" encontrou-me e com promessas de colocar-me a circular novamente, levou-me...

Ainda alimentei esperanças que num século novo, alguém me quisesse arranjar... Ainda tive forças de colocar o meu motor a trabalhar... após me meterem gasolina pelas goelas abaixo...
 
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Hugo Freitas Pereira

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Portalista
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Para minha grande desilusão, não fui para uma oficina, mas sim para um terreno a céu aberto, num parque fechado.

Fiquei confusa e pensei que deveria aguardar... que remédio...
Estávamos em 2000 ou 2001... não me lembro já...

Passou-se um ano... e mais um...
O parque foi enchendo e apercebi-me que era uma sucata... que tudo o que lá entrava não voltava a sair... pelo menos da mesma forma...

Fui vendo muitos mais novos do que eu serem esmagados sem dó nem piedade... Vendidos ás peças e esquartejados... e eu sempre esperando a minha vez...

Os meus pneus começaram a esvaziar...

Um dia, num fim de semana oiço vozes... e vejo pelo meu único olho, 4 fulanos... um deles com uma máquina fotográfica...
Ouço-os falar que deviam comprar-me para o clube deles... um clube de VWs? Teria ouvido bem?
Tiraram-me muitas fotos... foram embora e passado uns tempos um deles voltou... mas o meu dono recusou-se a vender-me...

Os anos foram passando... já estava com o meu moral todo em baixo, á semelhança dos meus 4 pneus, quando num dia vejo um miúdo com uma pedra na mão e atira-a de encontro ao meu vidro frontal direito...
Depois aparecem mais putos e decidem dançar no meu tecto... Mas que raio lhes passou pela cabeça?
Efectivamente fiquei com o tecto metido dentro na parte de trás...

Ninguém os repreendeu nem nada fizeram por mim... a chuva quando caia passou a acumular-se...

Ao longo dos tempos vários aproximaram-se de mim com intenções de me comprarem... mas não passavam disso... pois rapidamente desistiram ao verem o meu estado em relação ao preço pedido...

No início deste ano, um casalinho novo e outros dois homens surgiram na sucata...
Aproximaram-se de mim e com o meu dono travaram um diálogo... Queriam comprar-me... Acordaram um valor e tudo...
Tiraram-me fotos, lamentaram o meu estado e foram embora...

Passaram-se 3 meses e após 9 anos de silvado, vinha, favos de vespas, servindo de depósito a pára choques velhos e partidos de plástico (que estúpidos e burros estes sucateiros são... eles não enferrujam... podem deixá-los na rua)... perdi a esperança completa de viver...

A minha carroçaria demonstrava claramente os meus sentimentos... as minhas lágrimas eram a ferrugem que escorria... eram os buracos que representavam os vazios que sentia...

Todos os dias via um ou dois, ou até mais carros serem arrancados do chão pela máquina e esmagados... Um dia seria o meu...
 
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Hugo Freitas Pereira

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Portalista
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No entanto, hoje de manhã, sábado, 11 de Julho de 2009, vejo os dois homens, um mais velho do que o outro, que tinham vindo com o outro casal...
Lembrei-me que o de mais idade tinha dito ao virar-me as costas nesse dia que era uma consciência eu estar ali... Fora simpático da sua parte...

Desceram com o meu dono e vieram na minha direcção...
Não podia ser... devia ser para tirar alguma peça dum Nissan que agonizava à minha frente...
Depois veio um reboque...

Abriram-me as portas laterais e começaram a tirar a tralha que tinha no meu interior...

Não podia acreditar... seria mesmo verdade? Iriam levar-me dali para fora?

Vejo uma máquina de arrasto começar a vir na minha direcção... um, dois, três carros pelo ar... um motor e uma suspensão também... caem da máquina quase me acertando... sinto os respingos de óleo nos vidros e na porta... Será mesmo?

Um gancho no meu eixo e começam a puxar-me...
Eu quero fugir dali para fora... é inglório que após tantos anos de serviço morra ali lentamente a desfazer-me ou simplesmente esmagada como um plástico moderno...
Quero andar mas três das minhas rodas não obedecem... estou perra e trôpega depois de 9 anos na terra... espera, uma delas já se desprendeu...
Tenho direito a fotos... ajudam-me a subir para o reboque...

Estou simplesmente parva... Será um sonho?
 
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Hugo Freitas Pereira

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Portalista
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"-É para o Funchal", oiço o mais velho dizer ao condutor... É o mesmo que falou da outra vez... conheço-o... mas de onde? Não foi só daqui...

Em marcha lenta vou para uma bomba de gasolina onde colocam ar nos meus pneus... Não são só eles que se incham, mas também o meu orgulho...

Sigo toda contente a ver a vista de cima... estradas novas até... carros que nunca tinha visto... que maravilha passear outra vez, apesar de não ser pelos meus próprios meios...

Mas a minha memória começa a funcionar e lembro-me de onde conhecia o tal homem... ele trabalha perto da tal capela onde vivi há 30 anos... sim, é ele... mais velho e de cabelo grisalho, mas é ele...

Chego a uma nova casa... Garagem fechada e tudo... Sinto que a minha sorte mudou... e até mais uma roda resolve andar... mas a de trás esquerda teima a continuar presa... foram 9 anos parada... desculpem-me...

Após estar no interior da garagem, rapidamente apercebo-me que o meu novo dono é o tal que me lembrava... o outro rapaz é o seu genro... falam num meu irmão "Pestaninhas" que terá de vir para ali para ficar no lugar duma irmã minha mais nova, uma tal de "Madalena"...

Estarei a salvo? Parece-me que sim... Parecem-me boas pessoas... e parece que gostam de VWs...

Num abrir e fechar de olhos, quando dou por mim, à minha volta já estão outros 6 homens que chegaram em 2 carochas e que desejam boa sorte no meu restauro... Oiço em remendos já feitos... uma frente nova completa e até um kit de safaris como tinha quando nasci...

Mas não se ficaram só pelas palavras... quando me apercebi já não tinha vidros da frente, faróis e muito do lixo interior...
Depois o rapaz ficou sozinho comigo e limpou-me toda por dentro... aspirando-me e tudo...
Senti umas pancadas... mas não senti a dor... eram algumas mossas a serem retiradas...

Incrível... Estou salva... pelo menos da morte que era certa... Sentia que não poderia resistir a mais um Inverno... o meu tecto e goteiras está furado em vários sítios... a água iria acabar por dar cabo de mim...

No final do dia senti algo que não sentia há imensos anos... muitos mesmo... água na minha folha, mas com sabão... Indescritível... A sujidade acumulada, a tinta queimada e até líquenes saíram... fiquei com melhor aspecto... até uma lixa senti para tirar os escorridos da ferrugem...
Limparam-me as lágrimas... as da tristeza... pois agora as de felicidade não as vêm... e são muitas...

Parece-me que vou mudar de cor outra vez... uma "exigência" das senhoras da casa... Mas não me importo... acho que mereço...

Fui baptizada de "Maria das Dores", uma associação das letras da minha matrícula com as dores que tenho devido aos meus ferimentos e doença... Gostei... nunca tive nome... apenas era a "carrinha" ou o "cangalho"...

Agora só me resta ficar por muitos e bons anos nesta família, graças ao meu novo dono de cabelo grisalho...

Esta noite, pela primeira vez em muitos anos, tantos que nem me lembro ao certo, vou dormir numa garagem fechada e sei que amanhã acordarei com alguém a me tratar bem e não com música aos berros duma casa da vizinhança...
 
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Hugo Freitas Pereira

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Portalista
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O meu sogro foi o verdadeiro salvador da carrinha...
Ela existe na minha memória desde pequeno, pois estava sempre parada em frente a uma oficina que era especializada em VWs e Mercedes...

No início do século, era aqui que ela estava:
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E nesse sábado fomos mesmo lá buscá-la:

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Anexos

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OP
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Hugo Freitas Pereira

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Portalista
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"-E vão arranjá-la?" - perguntou o rapaz do reboque...
"-Ela só de ir para uma garagem regenera!"- explicou-lhe o meu sogro.
"-Sim, ela e o Pai Natal!"...

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O "murro" na lateral...

E os fundos da frente e da carga, que já eram...
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Gostamos tanto dos móveis em "carvalho" que os deixámos por lá...
 

Anexos

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AndreGaspar

Andre 21
Uau!

Julgo que foi das melhores apresentações que já vi a um Automóvel!
Uma História bastante triste, mas que mostra a fiabilidade destes carros!
Uma sorte teres conseguido tirar essa Menina dali, e apesar de tudo, não ter ido ao Peso antes de lá chegares....
Nota-se que já foi muito usada ao longo dos tempos!
A Madalena tem um óptimo Aspecto!
Espero mais Episódeos e fotos deste Restauro! ;) :)
 
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Hugo Freitas Pereira

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Portalista
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Obrigado pelas vossas palavras pessoal.

Este restauro começou em 2009, mas teve de ser interrompido em Março de 2012, aquando a minha aquisição do 181... para lavá-lo e aspirá-lo... :wacko: Só que a coisa descambou e deu no outro tópico que já conhecem... :ph34r:

Contudo, vou tentar ir contando aos poucos o trabalho (com avanços e recuos) que já foi realizado nela... ;)
 
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Hugo Freitas Pereira

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Portalista
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Umas horas depois o aspecto era este...
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E na lateral, uma simples lavagem com esponja e pano húmido fazia pequenos milagres...
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Ainda estive tentado a passar cera, mas seria um desperdício de tempo e material...
 

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