A história de 1, 2, 3, 4 raios… de sol
Resolvi sair do armário, abrir a caixa (de pandora?), pôr a boca no trombone e partilhar algumas histórias do meu Sunbeam.
O título
O meu Sunbeam tem a matrícula FP-96-69. Sim o meu tem matrícula, está em meu nome e se for apanhado em alguma manobra ilegal é altissimamente provável que eu vá a bordo, ao volante.
Mas, voltando ao título, o meu FP (isto não é nenhuma piadola à moda do Porto) na realidade são 1, 2, 3, 4 Sunbeam (s).
Na verdade o FP é o sucessor do EH, qualquer coisa, branco com capota preta de vinil.
Do EH, nascido algures entre 1972 e 1973, apenas lhe conheço verdadeiramente a história a partir de 1980.
A coisa foi mais ou menos assim…
O meu avô nasceu em 1910, era médico e desde novo sofria de asma e bronquite (que raio tem isto a ver com a história?).
Por causa da bronquite e da asma quando acabou o curso pirou-se do Porto em busca de melhores ares.
Como os meus bisavós tinham uma quintarola junto ao Douro no concelho do Marco, o meu avô resolveu atravessar o rio e foi parar a Cinfães (sim essa terra que aparece nas estatísticas do INE como sendo a segunda mais pobre do país, mas é mentira é só para enganar).
Como isto se passa nos anos 30 já todos perceberam que o EH ainda não tinha nascido, portanto vão ter que esperar mais um pouco.
O meu avô adorava HPs (Horse Power’s), equídeos percebem? Ok cavalos de quatro patas que se montam.
Não falhava uma feira de S. Martinho em Penafiel para ver as novidades cavalares e quando conseguia juntar uns cobres, para o que nunca teve muito jeito, trocava de montada por uma melhor, pelo menos quando se não enganava.
Depois haveria muitas histórias de cavalos para contar, mas agora não pode ser porque temos que chegar a 1972/1973 para o EH ver a luz do dia.
O meu avô era um garboso cavaleiro, aliás foi praticamente a única vaidade que lhe conheci, salvo a vaidade que tinha na minha avó que era a loirinha de olhos verdes mais bonita que vira em toda a sua vida e que desde o primeiro olhar aprisionou o seu coração para sempre.
Voltando à história, principal, agora vou romancear um pouco para acelerar e evitar que todos os elefantes fiquem a roncar.
Apesar de trocar com alguma frequência de cavalos o meu avô sempre teve o dom de fazer com que os seres vivos que com ele privassem lhe ganhassem afecto e os cavalos não eram excepção.
O meu avô era também um homem de afectos o que incluía os seus altivos ginetes.
Naquela época, dizem, além de poucas estradas haver, sítios existiam que para lá chegar nem caminho havia, mas apenas carreiros, veredas.
Num dia aziago voltava o meu avô a casa depois de ir consultar um “doente” a sua casa, que ficava pouco antes do fim do mundo e anoitecendo cedo por ser já inverno. Seguia apeado o meu avô e o cavalinho seguia-o como um cãozinho num desses carreiros que era preciso percorrer. Mas num momento malvado o cavalo escorregou no musgo húmido e caiu borda a baixo uns 2 ou 3 metros.
O meu avô logo o socorreu que para cuidar das almas como dos corpos não faz muita diferença entre as cavalgaduras e os cavalos propriamente. Mas o bichinho caiu mal, magoou-se numa pata e nas costelas, foi preciso quase levá-lo ao colo até casa, foi um suplício.
O Cavalinho magoou-se seriamente e foi preciso tomar a decisão última e brava, abreviar-lhe o sofrimento e mandá-lo para o céu dos cavalos.
Este acidente abalou muito o meu avô, aquele era o cavalo, dos vários que teve, com que(m) melhor se entendia. Cumprimentavam-se, falavam do tempo, discutiam diagnósticos e se no regresso a casa encontrassem uma encruzilhada mais embaralhada o meu avô não discutia com o cavalo e acatava a sua escolha sobre o rumo a seguir.
Não sei bem, mas o meu avô devia estar perto dos 40 quando acabou por aceitar o destino e transformar o estábulo em garagem.
Na época, mesmo em Cinfães os automóveis eram já maquinetas comuns entre as gentes que podiam e que não eram muitas já se vê.
Carta de condução não sei onde meu avô a foi a arranjar, mas se andou na escola, a escola não devia ser grande coisa.
E pronto, o meu avô comprou um carro em 10ª mão e estreou-se em grande estilo, comprou um Austin vermelho descapotável um dos de uma mão cheia que terão sido então importados e que não sei o modelo, pois nunca o vi nem mesmo em fotografias.
Fotografias de cavalos e a cavalo o meu avô tinha algumas mas de carros e de carro praticamente não existem.
O Austin era um caro bestial que, já nessa época, passava a vida a dar-lhe o amoque. O meu avô ficava desnorteado, mas não havia nada a fazer, quando o bicho não queria andar não havia empurrão que o fizesse mudar de ideias.
Felizmente que lá na terá além de um ou dois médicos também havia um taxista que era mecânico e mesmo sem telemóveis sempre se arranjava maneira de pedir socorro ao Sr. Jaime. Este chegava com ar bonacheirão e perguntava: então Sr. Dr. o que tem o doente?
O meu avô não respondia como lhe apetecia porque tinha o Sr. Jaime em grande conta e além disso não estava em posição de praguejar, só tinha que aguardar e depois seguir as instruções.
O Sr. Jaime, que também devia ser mágico, olhava para o motor pegava numas chaves de qualquer coisa, vinha dar ao motor de arranque, voltava ao motor, espreitava-lhe as entranhas, mandava o meu avô pôr o carro a trabalhar et, a dada altura, voilà o carro pegava e voltava a funcionar como, quase, novo até ao próximo achaque em que mais uma vez o Sr. Jaime seria chamado para fazer magia.
Este Austin derreteu o juízo ao meu avô, mas era um descapotável vermelho de meter vista e até tinha uma alavanca para aliviar o escape e pô-lo a roncar que até parecia uma máquina.
O pior era quando chovia. Não, não era um problema de bobine, era mesmo um problema hidroinsolúvel, chovia como lá fora. Mas para grandes males grandes remédios e vai daí passou a estar equipado com um novo acessório, um oleado. Com o oleado estendido na capota era mais estanque que os Pandur das nossas tropas.
Segundo um irmão da minha avó foi também um espectáculo ver o Austin a roncar de escape aberto a subir 31 de Janeiro, no Porto com o oleado em cima. Os transeuntes adoraram e o meu tio, que nem era crente, deu graças a Deus por ninguém saber que o dono de tão bizarra viatura era o seu cunhado.
Avançando, penso que depois deste Austin veio um Ford em 5ª mão. Deste não reza a história, isto é, devia pegar e andar, que era para isso que o meu avô o queria, e de tão certinho que devia ser não ficaram histórias para contar.
Depois penso que comprou outro Ford, um Prefect. Ou seria um Anglia? Não sei, tenho que consultar o acervo histórico da família pois existem uma ou duas fotos do carrito que também não deixou grandes histórias para contar, pegava e andava. Cumpria a missão.
Não sei se terá comprado outros, mas algures à volta de 65 o meu avô comprou um… Skoda verde alface, que esse já eu conheci. Penso mesmo que foi o primeiro carro onde tive o gosto de… enjoar.
Mas perguntar-me-ão os mais atentos: onde raio foi o médico da aldeia habituado a cavalos desencantar um Skoda? Ainda por cima novo.
A explicação tenho que a especular em surdina que estas coisas nunca se sabe.
O meu avô era do contra. Claro.
O Skoda era fabricado na, então, Checoslováquia portanto era uma questão de princípio, juntava-se o útil, o carro, ao agradável, provocar o olhar de soslaio dos mais esclarecidos do regime que sabiam que, apesar de verde, o carro era vermelho.
O Skoda penso que era um LB, a matrícula. O modelo seria um MB 1000 ou 1100.
O Skoda tinha um focinho todo catita, parecia que sorria.
Por alturas de entrar para a escola, em 71, tirei uma fotografia sentado dentro da mala, que era à frente pois que como sabem, os entendidos, o Skoda era um tudo atrás.
Não tenho a certeza, mas julgo que o Skoda MB 1000 ou 1100 era, já na época, um pachorrento, não era carro para grandes adrenalinas o que para o meu avô estava óptimo. O importante era pegar, principalmente no Inverno, e andar ainda que devagar e o Skoda não se negava.
Mas pelo uma vez o Skoda deu espectáculo.
Fomos ver a neve ao Marão. Ainda antes da pousada, se São Gonçalo, começaram a encostar carros à berma, alguns atascados. Mas o Skoda sempre a ronronar mansinho não desistia e foi dos poucos que foi até ao cimo e voltou sem uma única atascadela e tudo isto com o meu avô ao volante, que tinha nascido para trotear e galopar, não para pilotar.
Mas o destino foi madraço para o Skoda.
A Skoda não tinha rede de assistência em Portugal e poucos mecânicos gostavam de lhe pegar pois parece que o bicho era diferente das modas da época.
Então para mudar o óleo e fazer revisões, lembro que o carro foi comprado novo, o meu avô levava o Skoda à oficina da Saab em Costa Cabral, no Porto. Na altura, apesar de diferentes, parece que eram os mecânicos da Saab os mais capacitados a mexer no Skoda e além disso tinham também acesso às peças.
Tudo correu bem até que numa dessas revisões saímos do Porto depois do almoço, viemos pela Marginal a fora mas ainda antes de Entre-os-Rios o carro calou-se e não mais se fez ouvir. Diagnóstico: motor gripado. Pois, apesar dos mecânicos da Saab serem os mais capacitados, não apertarem devidamente o bojão do cárter, o carro veio a fazer chichi escuro desde o Porto e ao fim de uns 35/40 Km.s colou, calou-se, estancou e acabou.
Bem acabar acabar não acabou, mas a rectificação do motor demorou muito tempo até porque eram necessárias peças do lado de lá da cortina de ferro e as relações com os comunas não eram as melhores.
Entretanto o meu avô já não tinha cavalos e precisava de um carro para a sua vida de João Semana.
Então um amigo emprestou-lhe um carro que tinha por lá mais ou menos parado, um Volkswagen de 1950 e poucos, daqueles de vidro duplo atrás, com botão para dar ao motor de arranque, o acelerador penso que era uma espécie de rolamento e já tinha piscas mas não sei se eram de série.
O meu avô adorou, aquilo é que era um carro. Dava-se à chave e começava a trabalhar como um relógio suíço e para andar só tinha que meter gasolina e trocar o óleo de quando em vez. O bicho não gastava água nem aquecia, aparentemente, pois nem ponteiro de temperatura tinha.
O meu avô tinha descoberto o carro que lhe convinha. O Volkswagen tinha quase 20 anos mas não falhava nunca.
O Skoda acabou por ser reparado, mas o meu avô vendeu-o logo ao preço da uva mijona, que ele também não sabia fazer negócios melhores.
Como o Volks era emprestado foi à Guerin e comprou um de, mais ou menos, 68 (seria um LD?). Era um 1300 leite com café escuro que, apesar de não ser, parecia novo.
O meu avô que nunca tinha gostado de carros descobrira agora um carro que gostava, o Volkswagen carocha e não é que aparece no consultório um Zé Brasileiro português do mundo a dizer-lhe que ia voltar para o Brazil (na época ainda era com Z) mas queria vender o Volkswagen que comprara e estava praticamente novo. O meu avô, que nem era homem de gastar o dinheiro, que não tinha, fechou o negócio na hora, 30 ou 40 contos para lá e um 1302S para cá.
Um 1302S? Mas aquilo era uma máquina e o meu avô só tinha unhas para cavalos.
A coisa durante uns tempos era assim… O meu avô sempre foi muito distraído, passou a ter dois Volkswagens, de cor era parecida, embora o 1302S fosse mais claro, os para-choques eram diferentes mas isso eram bizantinices para o meu avô. Assim o meu avô pegava no Volkswagen que estivesse mais à mão, dava à chave engrenava a 1ª, arrancava e só então percebia em qual dos dois estava, pois o 1302S não se limitava a arrancar, segundo o meu avô saltava.
Mas isto de ter dois carros era coisa que não era para os cabedais do meu avô, que além do mais não precisava de dois carros para nada.
Então pega no 1300 (ou seria 1200?) e no 1302S vai à Guerin e anuncia: se eu deixar os dois aqui e comprar um novo ainda tenho que pagar alguma coisa?
- Sim Sr. Dr. tem que pagar alguma coisa. Olhe temos ali o novo modelo 1302, com novos interiores, novo volante, quatro piscas, um brinco e a fiabilidade de sempre e não é caro, custa 80 contos. Portanto com os dois carros que dá à troca e mais 15 (20?) contos leva um carro novo.
Negócio fechado. É aqui que entra para a família o 1302 HG-35-04. Não era S mas era novo e cheirava a novo. Que cheirinho.
Estamos em 1973, o EH, qualquer coisa, branco com capota preta de vinil já tinha nascido, mas eu ainda não sabia.
Querem saber mais?
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Um Skoda parecido em
http://www.flickr.com/photos/leicester-vehicle-photography/5512960566/
Fotos de Volks e Fords há muitas mesmo aqui no portal portanto é só fazer as contas, perdão, procurar.