Lá em cima, no início, fui anunciando que o meu Sunbeam (raio de sol) eram 4.
Até agora só falei de dois, o FP actual e o EH com que tudo começou.
Um dia vou ter que contar como aparecem o 3º e 4º Sunbeams, mas isso ainda vai demorar porque o 3º Sunbeam apenas o conheci no final do século passado, em circunstâncias aliás muito engraçadas. O 4º Sunbeam já é de este milénio.
Tanto o 3º como 4º Sunbeams são 1600 Super de apenas dois faróis, rectângulares, mas com uns cavalitos mais.
Quando começar a contar a história destes últimos dois Sunbeams os amigos portalistas não vão gostar de algumas passagens porque vai haver canibalismo e abates. Receio mesmo ser apedrejado porque então vão descobrir que atentei contra a vida e integridade de clássicos num passado não muito distante.
Vão também descobrir que afinal não sou um genuíno apreciador de clássicos, apenas ando por aqui porque ganhei afecto a um carro e descobri que por estes lados andavam muitos que sofriam do mesmo, isto é, também tinham carros não tanto pelo seu valor material mas pelo valor afectivo, que não raro é muito mais efectivo e para sempre.
Aqui chegado, ouço já elefantes e outros seres vivos de grande memória a roncar que adormeceram a pensar: o gaijo hoje só vai dar seca e não vai contar nenhuma história engraçada de carros.
Tínhamos ficado naquele ponto em que eu começava a arrancar musgo dos paralelos da calçada da casa dos meus avós, o que começou por volta dos meus 15 anos, no início dos anos 80.
Na verdade apesar de toda a minha ansiedade só com quase 20 anos é que
tirei a carta.
No entretanto como o meu avô não me deixava conduzir na estrada ia tirando partido do logradouro da casa que era razoavelmente grande.
Não me lembro exactamente quando foi a primeira vez que, além de pôr o carro a trabalhar, engrenei a primeira (ou terá sido a macha-atrás?), acelerei um pouco e fui aliviando a embraiagem até o carro… ir abaixo.
Mas tenho a certeza que treinei bastante a manobra de deixar o carro ir abaixo e aos poucos fui conseguindo cada vez fazer mais metros, isto é, aplicar tudo o que tinha observado ao longo de vários anos à prática.
Em 1980 o meu avô tinha 70 anos e era uma pessoa de saúde frágil pois toda a vida sofrera de asma e bronquite.
Além disso já se percebeu bem que o meu avô não ligava pevas a carros, apenas os utilizava porque precisava deles.
Assim sendo à que esclarecer que os dotes automobilísticos do meu avô eram muito parcos e era para o lado que ele dormia melhor.
Aliás dormia tão bem que um dia, ainda hei-de contar essa história, o VW 1302 parou contra um talude repentinamente com três pessoas a fazer a sesta, eu, a minha avó e o meu avô, que ia a conduzir. Nada de grave, depois de acordarmos foi só meter marcha atrás, dar gás, desatascar, o que não era difícil num carocha, voltar ao alcatrão e seguir viagem. A isto acresceu uma óptica do lado direito, umas marretadas no guarda-lamas e no para-choques, que já era daqueles grandes e rijos e não se falou mais nisso.
Na minha família, até à minha geração, ou, com mais rigor, até eu começar a conduzir
[1], as mulheres conduziam muito melhor que os homens, sendo que o apogeu das condutoras do meu sangue foi a minha avó materna que deveria estar a fazer agora 100 anos se fosse viva. Esta minha avó era um charme em qualquer circunstância e a conduzir além de ser um charme era uma competência. Esta minha avó gabava-se de ter feito exame de condução num Chevrolet enorme do pai em ruas estreitas de Lisboa e foi como limpar o rabinho a bebés, uma limpeza.
Mas como eu tinha nascido fadado para excelência da condução
[2] e o meu avô detestava fazer manobras, principalmente se implicasse fazer marcha à ré, fui ganhando o estatuto de manobrador do carro à volta de casa.
Como o percurso era pequeno comecei a fazer a coisa cada vez com mais gás para dar mais pica, pelo menos quando o meu avô não estava por perto. Assim nos meus melhores desempenhos ia buscar o carro atrás de casa, fazia uma tanja a um esteio da ramada e dobrava a esquina da casa em slide controlado entre a dita esquina e o tanque do lado oposto, sobrando cerca de meio metro para cada lado. A coisa corria tão bem que nunca lá deixei nem um bocadinho de tinta e foi assim que aprendi a arrancar musgo à calçada pois o Sunbeam então, como agora, era danado para
driftar.
Como o meu avô era médico e aos 70 e tais ainda fazia alguma, já pouca comparada com outros tempos, clínica domiciliária eu ia com ele muitas vezes e nos dias bons as casas ficavam longe da estrada fazendo-se o acesso por caminhos de cabras. Fixe, era aí que eu tomava os comandos, contornava obstáculos, evitava atascanços, o que era fácil de acontecer com a tracção traseira do Sunbeam e ainda dava direito a fazer tangentes milimétricas nos apertos que iam aparecendo. Nos dias verdadeiramente bons a casa do doente ficava um pouco desviada do local onde ficava o carro e além disso era preciso dar a volta para irmos embora o que implicava manobras e percursos suplementares. Era uma festa, com sorte até dava para empandeirar a máquina com a 1ª a fundo e depois só tinha que esperar calmamente no carro que o meu avô acabasse a consulta, o que poderia demorar bastante tempo, porque o meu avô era daqueles que falava com os doentes e os doentes melhoravam só de conversar com ele, magias.
Foi também numa destas saídas com o meu avô que tive a sorte de, apesar de ter estacionado na berma da estrada, a casa do doente ficar um pouco desviada.
No local havia um entroncamento com um largo bem grande e boa visibilidade. Desta vez era o VW 1302. Saí do carro e avaliei o terreno, apalpei o percurso, calculei os ângulos. Projectei mentalmente o que teria de fazer mesmo que algo corresse mal e tivesse que accionar plano de contingência.
Entrei, dei à chave, engrenei a 1ª, assegurei-me que não passava vivalma, pisei o acelerador, arranquei com 40 (35?) cavalos em fúria, alivio um pouco o acelerador dou um golpezinho de direcção à direita e viro repentinamente à esquerda encostando o acelerador no fundo. O pião, para uma primeira vez, saiu quase perfeito, foram 360º em grande estilo e em aceleração, que piões com travão de mão só muito mais tarde, quando consegui por as unhas em carros levezinhos atrás, o que não era ocaso do VW, e travões de mão eficazes, o que não era o caso do Sunbeam.
Assim fui tendo as minhas primeiras descargas de adrenalina, sempre sem maiores consequências.
Ficam para mais tarde outras cenas de adrenalina em que felizmente Nº Senhor estava disponível para mim e deu uma mãozinha para corrigir a trajetória fatal.
Bom fim-de-semana
JP
[1] Se alguém conhecer os gaijos da minha família, não lhes digam nada porque se não podem ter a certeza que vão apresentar argumentos, quase, convincentes, de que estou a mentir.
[2] Excelência? Que modéstia.