Passeio no parque de estacionamento

Lembrei-me disto, agora que se aproxima a época natalícia. Não tem muito a ver com clássicos, e se calhar até pouco a ver com carros, mas isto será uma coisa só minha? E se calhar nem devia estar aqui, mas se não for autorizado quem de direito que apague, com a minha bênção.



Confesso. Sou um fraco, sem vontade própria, curvado à vontade de outrem, um invertebrado, um flácido. Só assim se explica que me tenham convencido a ir às compras a uma superfície comercial. Poderia inventar uma justificação se tivesse frequentado um supermercado. Alguma coisa máscula e viril, como "fui comprar 3 grades de cerveja para beber antes do jantar" ou "acabou-se-me o tabaco de mascar" ou até "precisei de comprar uma pedra de amolar para afiar a minha faca-de-mato". Infelizmente o termo "superfície comercial", outrora tão abrangente que podia significar qualquer área onde se praticasse a nobre arte do comércio, refere-se hoje a estabelecimentos pimpões e elegantemente decorados, onde se vende de tudo, desde meias de seda para a perna da donzela mais delicada até tartarugas de estimação. De tudo, menos facas de mato e tabaco de mascar. E raramente grades de cerveja.
Pois foi a um desses estabelecimentos, nem supermercado nem centro comercial (noção retrógrada e erradicada do vocabulário actual), e que é hoje designado por "área comercial", que me arrastaram, para fazer compras indeterminadas, ou até provavelmente nenhuma.
Aquilo que estas áreas têm de bom é estarem providas de amplos estacionamentos subterrâneos, suficientemente espaçosos para agradar quer ao claustrofóbico mais exigente quer ao agorafóbico mais exacerbado, com capacidade para uma miríade de viaturas de todos os estratos sociais. É possível observar no parque de estacionamento um extravagante Porsche Lapata estacionado ao lado de um humilde VW Cochonilha, mesmo que dois pisos acima os proprietários frequentem estabelecimentos tão díspares que nem nos corredores correm o risco de se cruzar. Foi com à vontade e até (confesso) algum entusiasmo que enveredei pela rampa que fez o meu vulgar automóvel de gama média/baixa descer um piso abaixo do nível da rua. E quando digo que enveredei é porque o acesso é tão estreito que quase nem uma vereda seria, em qualquer outro lugar. Aqui é um exercício de racionalização de espaço. Enfim, lá desci um piso, sem me aperceber que a descida era apenas o primeiro passo na direcção dos infernos.
Começou logo que cheguei ao piso. A descida era tão íngreme que raspei com a parte da frente no chão. Impróprio para Porsches Lapata ou Lamborghinis Miufa. Depois foi só escolher um lugar para estacionar. Há um critério simples para estacionar no parque subterrâneo de uma área comercial: deixar o carro em frente do acesso ao piso das compras, e uma vez lá em cima memorizar cuidadosamente de que acesso se trata, de forma a utilizá-lo no regresso e deparar imediatamente com a nossa viatura. A alternativa é andar perdido entre a zona L4 cor-de-rosa do piso -3 e a T2 violeta do piso -1. Invariavelmente isso proporciona incontáveis horas de ameno passeio carregado de compras ou demasiado grandes ou demasiado pesadas, às vezes ambos, entre viaturas multicolores de diversas proveniências até encontrar a que pretendemos. Infelizmente, o acesso estava repleto de carros estacionados à frente, atrás e dos lados. Procurei outro acesso. Passei várias vezes no mesmo sítio, porque o parque é labiríntico, com inúmeros corredores de sentido único e viragens obrigatórias à esquerda, e lá em baixo o GPS não funciona. Depois de muitas voltas lá encontrei outra porta de acesso à superfície comercial. Afinal não era outra, era a mesma, eu é que estava confuso com tantas voltas lá em baixo, sem ao menos ter o sol para me guiar. Continuava a não haver lugar para estacionar. Suspirei e fiz-me de novo à estrada, em busca de outra porta. O trânsito lá em baixo era frenético, com filas em quase todas as travessas. Avistei ao longe outra porta e para lá me dirigi, devagar, inspeccionando todos os cantinhos na busca de um lugar vazio. Debalde. Não tinha importância, o que eu pretendia era um lugar à porta, para não perder o carro. Não havia. Procurei à frente, atrás e dos lados. Não havia. Em vez de procurar pelo parque todo, como uma barata tonta, optei pela estratégia nº2: ficar parado até que alguém saísse e eu pudesse ocupar o lugar. 25 minutos depois, aconteceu: 3 pessoas entraram dentro de um carro e prepararam-se para sair. Liguei o motor, fiz pisca para avisar toda a gente que o lugar que viria a haver era meu, e esperei que recuassem. E esperei. E esperei. Não sei o que estavam os 3 a fazer dentro do carro, mas demorou uns bons 7 minutos até que a luz de marcha atrás acendesse e o malfadado automóvel vagasse o tão ansiado lugar de estacionamento. Avancei precipitadamente, não fosse alguém antecipar-se, apesar do pisca, e já tinha metade da manobra feita quando notei que o lugar era reservado a grávidas. Ainda hesitei, mas a minha consciência cívica falou mais forte, e apesar dos 32 minutos de espera recuei e retomei o meu lugar em frente do acesso ao centro comercial. Imediatamente um utilitário vermelho manobrou rapidamente e estacionou com presteza no lugar que fora brevemente meu. Lá de dentro saiu um jovem elegante e escorreito, com um ar nada grávido, que foi rapidamente à sua vida, deixando-me à espera enquanto maldizia a minha vida. E também a de todos os proprietários de todos os automóveis que entupiam o estacionamento. Depois de esperar mais 10 minutos sem que ninguém se fosse embora, perdi a paciência e resolvi-me a sair do lugar. Não tinha andado 10 metros quando vislumbrei, 3 pilares à frente, um lugar vago. Pus o prego a fundo e em menos de nada estava a garantir o tão almejado estacionamento. Era para carros eléctricos! Havia até 3 lugares disponíveis, para carros eléctricos. Mas só havia lugares disponíveis para carros eléctricos. Para automóveis de combustão interna não havia nenhum. O que também não havia era carros eléctricos. Só os lugares para eles.
De repente, o impensável aconteceu: um casal, empurrando um volumoso carrinho de supermercado dirigiu-se para uma minúscula carripana que atafulhou vagarosamente com todas as bugigangas do carrinho. Depois a senhora foi arrumá-lo e recolher a sua moeda de plástico enquanto o cavalheiro retirava o microcarro do seu lugar junto ao pilar que ostentava num cor-de-laranja berrante a informação K34. A não esquecer, porque o acesso ao centro comercial estava tão longe que já nem o via, mas por coisa nenhuma deste mundo iria eu perder agora este lugar. Com cuidado, muito cuidado, porque o pilar de cimento tinha um aspecto sólido e o meu carro não era um microcarro, enfiei o automóvel no lugar, entre os dois riscos geometricamente desenhados no chão, e só depois de ter parado, accionado o travão de mão e desligado o motor me atrevi a dar largas ao meu contentamento: gritei "yes!", dei vivas, cantei hosanas e dei murros no tejadilho.
Foi só quando quis sair do carro que percebi que não havia espaço para abrir a porta. Do outro lado também não. Não importa, daqui não saio. Encontrei um lugar e aqui vou ficar até que me mandem embora ou acabar de escrever este texto no telemóvel.
 
OP
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Santos António

Santos António

Veterano
Ui. Novidades houve, mas foram há tanto tempo que já nem me lembro bem delas. Mas realmente devo actualizar esse diário de bordo. Comecei-o para registar as novidades e deixei isso para trás. Falta de apetite...
 

JP Vasconcelos

Raio de Sol
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Portalista
Lembrei-me disto, agora que se aproxima a época natalícia. Não tem muito a ver com clássicos, e se calhar até pouco a ver com carros, mas isto será uma coisa só minha? E se calhar nem devia estar aqui, mas se não for autorizado quem de direito que apague, com a minha bênção.



Confesso. Sou um fraco, sem vontade própria, curvado à vontade de outrem, um invertebrado, um flácido. Só assim se explica que me tenham convencido a ir às compras a uma superfície comercial. Poderia inventar uma justificação se tivesse frequentado um supermercado. Alguma coisa máscula e viril, como "fui comprar 3 grades de cerveja para beber antes do jantar" ou "acabou-se-me o tabaco de mascar" ou até "precisei de comprar uma pedra de amolar para afiar a minha faca-de-mato". Infelizmente o termo "superfície comercial", outrora tão abrangente que podia significar qualquer área onde se praticasse a nobre arte do comércio, refere-se hoje a estabelecimentos pimpões e elegantemente decorados, onde se vende de tudo, desde meias de seda para a perna da donzela mais delicada até tartarugas de estimação. De tudo, menos facas de mato e tabaco de mascar. E raramente grades de cerveja.
Pois foi a um desses estabelecimentos, nem supermercado nem centro comercial (noção retrógrada e erradicada do vocabulário actual), e que é hoje designado por "área comercial", que me arrastaram, para fazer compras indeterminadas, ou até provavelmente nenhuma.
Aquilo que estas áreas têm de bom é estarem providas de amplos estacionamentos subterrâneos, suficientemente espaçosos para agradar quer ao claustrofóbico mais exigente quer ao agorafóbico mais exacerbado, com capacidade para uma miríade de viaturas de todos os estratos sociais. É possível observar no parque de estacionamento um extravagante Porsche Lapata estacionado ao lado de um humilde VW Cochonilha, mesmo que dois pisos acima os proprietários frequentem estabelecimentos tão díspares que nem nos corredores correm o risco de se cruzar. Foi com à vontade e até (confesso) algum entusiasmo que enveredei pela rampa que fez o meu vulgar automóvel de gama média/baixa descer um piso abaixo do nível da rua. E quando digo que enveredei é porque o acesso é tão estreito que quase nem uma vereda seria, em qualquer outro lugar. Aqui é um exercício de racionalização de espaço. Enfim, lá desci um piso, sem me aperceber que a descida era apenas o primeiro passo na direcção dos infernos.
Começou logo que cheguei ao piso. A descida era tão íngreme que raspei com a parte da frente no chão. Impróprio para Porsches Lapata ou Lamborghinis Miufa. Depois foi só escolher um lugar para estacionar. Há um critério simples para estacionar no parque subterrâneo de uma área comercial: deixar o carro em frente do acesso ao piso das compras, e uma vez lá em cima memorizar cuidadosamente de que acesso se trata, de forma a utilizá-lo no regresso e deparar imediatamente com a nossa viatura. A alternativa é andar perdido entre a zona L4 cor-de-rosa do piso -3 e a T2 violeta do piso -1. Invariavelmente isso proporciona incontáveis horas de ameno passeio carregado de compras ou demasiado grandes ou demasiado pesadas, às vezes ambos, entre viaturas multicolores de diversas proveniências até encontrar a que pretendemos. Infelizmente, o acesso estava repleto de carros estacionados à frente, atrás e dos lados. Procurei outro acesso. Passei várias vezes no mesmo sítio, porque o parque é labiríntico, com inúmeros corredores de sentido único e viragens obrigatórias à esquerda, e lá em baixo o GPS não funciona. Depois de muitas voltas lá encontrei outra porta de acesso à superfície comercial. Afinal não era outra, era a mesma, eu é que estava confuso com tantas voltas lá em baixo, sem ao menos ter o sol para me guiar. Continuava a não haver lugar para estacionar. Suspirei e fiz-me de novo à estrada, em busca de outra porta. O trânsito lá em baixo era frenético, com filas em quase todas as travessas. Avistei ao longe outra porta e para lá me dirigi, devagar, inspeccionando todos os cantinhos na busca de um lugar vazio. Debalde. Não tinha importância, o que eu pretendia era um lugar à porta, para não perder o carro. Não havia. Procurei à frente, atrás e dos lados. Não havia. Em vez de procurar pelo parque todo, como uma barata tonta, optei pela estratégia nº2: ficar parado até que alguém saísse e eu pudesse ocupar o lugar. 25 minutos depois, aconteceu: 3 pessoas entraram dentro de um carro e prepararam-se para sair. Liguei o motor, fiz pisca para avisar toda a gente que o lugar que viria a haver era meu, e esperei que recuassem. E esperei. E esperei. Não sei o que estavam os 3 a fazer dentro do carro, mas demorou uns bons 7 minutos até que a luz de marcha atrás acendesse e o malfadado automóvel vagasse o tão ansiado lugar de estacionamento. Avancei precipitadamente, não fosse alguém antecipar-se, apesar do pisca, e já tinha metade da manobra feita quando notei que o lugar era reservado a grávidas. Ainda hesitei, mas a minha consciência cívica falou mais forte, e apesar dos 32 minutos de espera recuei e retomei o meu lugar em frente do acesso ao centro comercial. Imediatamente um utilitário vermelho manobrou rapidamente e estacionou com presteza no lugar que fora brevemente meu. Lá de dentro saiu um jovem elegante e escorreito, com um ar nada grávido, que foi rapidamente à sua vida, deixando-me à espera enquanto maldizia a minha vida. E também a de todos os proprietários de todos os automóveis que entupiam o estacionamento. Depois de esperar mais 10 minutos sem que ninguém se fosse embora, perdi a paciência e resolvi-me a sair do lugar. Não tinha andado 10 metros quando vislumbrei, 3 pilares à frente, um lugar vago. Pus o prego a fundo e em menos de nada estava a garantir o tão almejado estacionamento. Era para carros eléctricos! Havia até 3 lugares disponíveis, para carros eléctricos. Mas só havia lugares disponíveis para carros eléctricos. Para automóveis de combustão interna não havia nenhum. O que também não havia era carros eléctricos. Só os lugares para eles.
De repente, o impensável aconteceu: um casal, empurrando um volumoso carrinho de supermercado dirigiu-se para uma minúscula carripana que atafulhou vagarosamente com todas as bugigangas do carrinho. Depois a senhora foi arrumá-lo e recolher a sua moeda de plástico enquanto o cavalheiro retirava o microcarro do seu lugar junto ao pilar que ostentava num cor-de-laranja berrante a informação K34. A não esquecer, porque o acesso ao centro comercial estava tão longe que já nem o via, mas por coisa nenhuma deste mundo iria eu perder agora este lugar. Com cuidado, muito cuidado, porque o pilar de cimento tinha um aspecto sólido e o meu carro não era um microcarro, enfiei o automóvel no lugar, entre os dois riscos geometricamente desenhados no chão, e só depois de ter parado, accionado o travão de mão e desligado o motor me atrevi a dar largas ao meu contentamento: gritei "yes!", dei vivas, cantei hosanas e dei murros no tejadilho.
Foi só quando quis sair do carro que percebi que não havia espaço para abrir a porta. Do outro lado também não. Não importa, daqui não saio. Encontrei um lugar e aqui vou ficar até que me mandem embora ou acabar de escrever este texto no telemóvel.

Fantástico, parecia que estavas a descrever as minhas incursões aos parques das supérfluas superfícies
 
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