Alfa Romeo ad perpetuam rei memoriam - alfasud sprint 1.5 veloce

Diários de Bordo

Alfa Romeo ad perpetuam rei memoriam - alfasud sprint 1.5 veloce

NunoCouto

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Portalista
É tão bom intrigante ver se o capítulo seguinte traz ou não a visão da máquina, do eleito.

Venha então dai o próximo capítulo que a Malta já escorre baba pelo queixo.
 

António José Costa

Regularidade=Navegação, condução e cálculo?
Portalista
Não queria estar aqui com chouriços no meio desta prosa maravilhosa, mas estou apaixonado, ainda bem que não és do gênero feminino ou a minha Maria ainda vinha para aqui tratar de mim como as nossas professoras trataram de nós nos idos de 80.
 
OP
OP
Miguel Gomes Dinis
...E foi assim que um dia de sol a pique, a caminho da escola da Torrinha no Porto me encontro com aquilo que me parecia um Alfetta GTV. Conhecia-o (ao Alfetta), porque circulava um pelos meus arrabaldes, e já o tinha registado na memória depois de devidamente ratificado e classificado pelo pai. Este parecia, mas não era. Tinha que ver sobretudo com escala. O Alfetta GTV tinha uma aparência mais máscula, de homem feito, de músculo feito de força. Este tinha um ar mais franzino, naquela fase de moço que ainda não tem os primeiros pelos de barba, sem borbulhas e pele macia. Naquele ar bonito e definido de jovem rapaz, desperto para a vida, animado de alma, singelo de corpo.

Paradoxalmente, e contrariamente à jovialidade do seu aspecto, exibia marcas que o tempo lhe deixou, e escaras já martirizadas de uma vida cheia, de uma cidade impiedosa e um dono indolente. O Avorio que brilhou no dia em que saiu de fábrica estava basso, a qualidade sofrível da chapa da zincagem faziam longos corrimentos castanhos por baixo do para brisas, nos cantos dos vidros, junto das embaladeiras... Jazia estacionado junto do lancil de olhos lassos, soçobrado ao espírito de missão de carro de trabalho, carro de família, carro de transporte. Era bonito, mesmo em vestes prácticas de transporte comum... Por cima da matrícula dizia "Alfasud". Um pouco abaixo do lado esquerdo em letra de mão, "sprintveloce 1.5". Olhei novamente para trás, apressado pelo passo aligeirado da mãe para uma última vista. Que lindo carro...

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A caminho de casa, sentado no banco de trás do carro que não vestia de alma, cerrei os olhos e pensei ser aquele Alfasud Sprintveloce 1.5 o carro do pai. De certeza que o pai conservaria o Avorio a brilhar. De certeza que não permitiria que lhe escorresse ferrugem por qualquer poro (e céus, como isso seria difícil num alfasud de uso diário que dormisse na rua...). E de certeza que me levaria embalado a viajar ao som do boxer, nos passeios matinais até à porta da escola como o pai do menino do Alfetta azul. E de certeza que olharia para trás sempre que lhe saísse pela porta. E de certeza que carregaria forte no acelerador para me ver sorrir. E de certeza que a rede da escola, o chão de saibro e as pedras bicudas ganhariam novo palco na espera de algo especial que todos os dias me viesse buscar.

Mas o pai não conduzia um Alfasud Sprintveloce 1.5, ou pensaria nisso sequer. Mas a memória ficou e o verão passara. Depressa como o fogo num rastilho. Novamente a rotina até à escola, no recreio a ver os meninos chegar, a ver os meninos partir. As sandes de queijo, marmelada e quando com sorte manteiga. O leite escolar. A ternura da professora. A gaita de amolador à hora do ditado. Os berlindes, o jogo do espeta, os piões e as caricas no intervalo. Uma coisa nova este ano, ainda assim. Uma amiga da mãe aparecia para o chá com carro novo. Nada mais nada menos do que um Alfasud Sprint. Não era igual no entanto ao que me tinha prendido ao primeiro olhar. Cinzento, os para choques eram agora de plástico, os faróis maiores, os farolins deixavam de ter 2 barras e apareciam como um só, e por dentro era cinzento também, em pied de poule com tablier preto, também ele aparentemente diferente daquele que tinha visto na rua do Breyner. Tinha um ar menos "limpo" que o primeiro. Mais maquilhado, menos puro. Bonito ainda assim. E que bem ficaria a mãe num destes. Imaginava os pais a trocarem palavras de adultos, daquelas que não entendíamos ao tempo, com um senhor bem vestido ali em Fernão Magalhães na Quadrifólio, dando para troca a velha Dyane para trazer para casa um reluzente sprint. Imaginava-me a sair no cheiro de carro novo, à porta da imponente fachada do edifício dos anos 30, de onde tantos outros teriam sido felizes a sair com tantos carros e tão bonitos... e que tantos desses ficariam tristes ao olhar para ela assim aos olhos de hoje...

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A senhora colega da mãe viria a trocar pouco tempo depois o belíssimo Sprint por um bem mais modesto e prosaico Renault Super 5, cansada do temperamento do Alfa, da ferrugem precoce e da memória recente de um qualquer episódio de estrada menos feliz, algures na estrada entre Braga e Guimarães... Ficou uma vez mais a memória.

E o ensino primário passou, lento como uma locomotiva a vapor, sempre rápido nas longas férias de verão. Eventualmente o senhor do Alfetta trocara também de carro, ou o menino sairia da escola, uma vez que deixara de o ver. A mudança dos finais de 80 iria operando a sua revolução silenciosa, os para choques cromados iam desaparecendo, o progresso ia tomando lugar, o poder de compra e a economia familiar tornava-se mais robusta, e o parque automóvel rejuvenescia concomitantemente. E foi nesta altura justamente que 2 amigos dos pais trocavam de carro ao mesmo tempo. Eramos vizinhos, e trocar de carro era à altura um evento motivo de ajuntamento de familiares e amigos. Dois na mesma rua e ao mesmo tempo era uma celebração a marcar no calendário do tempo. A assim se juntavam dois amigos, exibindo a montra da tecnologia dos finais de década.

O primeiro, e aquele que juntava mais à sua volta, com o recém lançado Audi 80. Branco. 1.6E.

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O outro, que ao dono me juntou a mim, e um primo deste, e que felizes rapidamente nos experimentámos a testar a dinâmica da coisa longe dali.

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Um Alfa Romeo 75 1.6 I.E. Prima Série

Eramos 2 adultos e um míudo dentro do Alfa. Tenho a certeza que bastante mais felizes do que aqueles que se fascinavam com o comando remoto de abertura da tranca de portas do 80...

(continua…)
 
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Est
...E foi assim que um dia de sol a pique, a caminho da escola da Torrinha no Porto me encontro com aquilo que me parecia um Alfetta GTV. Conhecia-o (ao Alfetta), porque circulava um pelos meus arrabaldes, e já o tinha registado na memória depois de devidamente ratificado e classificado pelo pai. Este parecia, mas não era. Tinha que ver sobretudo com escala. O Alfetta GTV tinha uma aparência mais máscula, de homem feito, de músculo feito de força. Este tinha um ar mais franzino, naquela fase de moço que ainda não tem os primeiros pelos de barba, sem borbulhas e pele macia. Naquele ar bonito e definido de jovem rapaz, desperto para a vida, animado de alma, singelo de corpo.

Paradoxalmente, e contrariamente à jovialidade do seu aspecto, exibia marcas que o tempo lhe deixou, e escaras já martirizadas de uma vida cheia, de uma cidade impiedosa e um dono indolente. O Avorio que brilhou no dia em que saiu de fábrica estava basso, a qualidade sofrível da chapa da zincagem faziam longos corrimentos castanhos por baixo do para brisas, nos cantos dos vidros, junto das embaladeiras... Jazia estacionado junto do lancil de olhos lassos, soçobrado ao espírito de missão de carro de trabalho, carro de família, carro de transporte. Era bonito, mesmo em vestes prácticas de transporte comum... Por cima da matrícula dizia "Alfasud". Um pouco abaixo do lado esquerdo em letra de mão, "sprintveloce 1.5". Olhei novamente para trás, apressado pelo passo aligeirado da mãe para uma última vista. Que lindo carro...

Ver anexo 1152559

A caminho de casa, sentado no banco de trás do carro que não vestia de alma, cerrei os olhos e pensei ser aquele Alfasud Sprintveloce 1.5 o carro do pai. De certeza que o pai conservaria o Avorio a brilhar. De certeza que não permitiria que lhe escorresse ferrugem por qualquer poro (e céus, como isso seria difícil num alfasud de uso diário que dormisse na rua...). E de certeza que me levaria embalado a viajar ao som do boxer, nos passeios matinais até à porta da escola como o pai do menino do Alfetta azul. E de certeza que olharia para trás sempre que lhe saísse pela porta. E de certeza que carregaria forte no acelerador para me ver sorrir. E de certeza que a rede da escola, o chão de saibro e as pedras bicudas ganhariam novo palco na espera de algo especial que todos os dias me viesse buscar.

Mas o pai não conduzia um Alfasud Sprintveloce 1.5, ou pensaria nisso sequer. Mas a memória ficou e o verão passara. Depressa como o fogo num rastilho. Novamente a rotina até à escola, no recreio a ver os meninos chegar, a ver os meninos partir. As sandes de queijo, marmelada e quando com sorte manteiga. O leite escolar. A ternura da professora. A gaita de amolador à hora do ditado. Os berlindes, o jogo do espeta, os piões e as caricas no intervalo. Uma coisa nova este ano, ainda assim. Uma amiga da mãe aparecia para o chá com carro novo. Nada mais nada menos do que um Alfasud Sprint. Não era igual no entanto ao que me tinha prendido ao primeiro olhar. Cinzento, os para choques eram agora de plástico, os faróis maiores, os farolins deixavam de ter 2 barras e apareciam como um só, e por dentro era cinzento também, em pied de poule com tablier preto, também ele aparentemente diferente daquele que tinha visto na rua do Breyner. Tinha um ar menos "limpo" que o primeiro. Mais maquilhado, menos puro. Bonito ainda assim. E que bem ficaria a mãe num destes. Imaginava os pais a trocarem palavras de adultos, daquelas que não entendíamos ao tempo, com um senhor bem vestido ali em Fernão Magalhães na Quadrifólio, dando para troca a velha Dyane para trazer para casa um reluzente sprint. Imaginava-me a sair no cheiro de carro novo, à porta da imponente fachada do edifício dos anos 30, de onde tantos outros teriam sido felizes a sair com tantos carros e tão bonitos... e que tantos desses ficariam tristes ao olhar para ela assim aos olhos de hoje...

Ver anexo 1152522

A senhora colega da mãe viria a trocar pouco tempo depois o belíssimo Sprint por um bem mais modesto e prosaico Renault Super 5, cansada do temperamento do Alfa, da ferrugem precoce e da memória recente de um qualquer episódio de estrada menos feliz, algures na estrada entre Braga e Guimarães... Ficou uma vez mais a memória.

E o ensino primário passou, lento como uma locomotiva a vapor, sempre rápido nas longas férias de verão. Eventualmente o senhor do Alfetta trocara também de carro, ou o menino sairia da escola, uma vez que deixara de o ver. A mudança dos finais de 80 iria operando a sua revolução silenciosa, os para choques cromados iam desaparecendo, o progresso ia tomando lugar, o poder de compra e a economia familiar tornava-se mais robusta, e o parque automóvel rejuvenescia concomitantemente. E foi nesta altura justamente que 2 amigos dos pais trocavam de carro ao mesmo tempo. Eramos vizinhos, e trocar de carro era à altura um evento motivo de ajuntamento de familiares e amigos. Dois na mesma rua e ao mesmo tempo era uma celebração a marcar no calendário do tempo. A assim se juntavam dois amigos, exibindo a montra da tecnologia dos finais de década.

O primeiro, e aquele que juntava mais à sua volta, com o recém lançado Audi 80. Branco. 1.6E.

Ver anexo 1152555

O outro, que ao dono me juntou a mim, e um primo deste, e que felizes rapidamente nos experimentámos a testar a dinâmica da coisa longe dali.

Ver anexo 1152558

Um Alfa Romeo 75 1.6 I.E. Prima Série

Eramos 2 adultos e um míudo dentro do Alfa. Tenho a certeza que bastante mais felizes do que aqueles que se fascinavam com o comando remoto de abertura da tranca de portas do 80...

(continua…)
Estou fascinado , nao tanto pelos carros mas pela tua prosa que me faz recuar inévitavelmente ao meu passado e a minha infancia , aonde tu resumiste a minha Escola primaria.
 
OP
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Miguel Gomes Dinis
(...)

E o tempo passava. Feliz na aparência, martirizado na substância. Os primeiros confrontos, os dilemas de estrutura e personalidade, sorrir para o mundo, chorar para dentro como "I Pagliacci" de Leoncavallo...



Os dias das festas de aniversário com o clássico Dan Cake e as bolachas Joaninha iam ficando para trás. Os meninos continuavam ainda a saltar do tabuleiro inferior da ponte D. Luís e agarravam-se à traseira dos troleis para ir da Pasteleira à baixa... Portugal abria-se ao mundo. Chegavam os primeiros hipermercados, e com eles a abundância da oferta. Os aniversários deixavam de ser mono temáticos. O velho 33 1.5 nuova verde do parente distante da província dava agora lugar a um pequeno japonês. O 155 1.8 Twin Spark 8v bordeaux de alguém próximo, viatura de serviço da multinacional da qual era quadro, era entregue por troca com um vulgar alemão de frota a diesel. Caia o muro de Berlim. Ganhava definição a primeira ideia rudimentar de política como ciência. De Marx, de Engels. De Hitler, de Goebbels. D"O capital" ao "Mein Kampf". Do Comunismo ao Nacional Socialismo. De experimentar apalpar as primeiras arestas dos extremos... e fermentava a ideia de que o Bentley Continental vermelho poderia agora atravessar fronteira livremente. Não haveria limite instransponível entre um britânico de nome Elton e estilo kitsch e uma soviética chamada Nikita de traje militar. Não mais "10 tin soldiers in a row" já que "guns and gates no longer hold you in". O tempo veio revelar que outro tipo de guarda e barreira acabou por cair. O Elton não se interessaria por "Nikitas", e por aí bem que a pobre moça continuaria nos gélidos desertos da Tundra esperando por ele... Pois se até o Fidel se rendia aos encantos, certamente deixaria de haver fronteiras para mais algumas coisas. Não foi bem assim...

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O Bentley já era Bentley, e não Rolls do que a pequena cabeça tinha guardado na memória. O "USA for Africa" passava todos os domingos antes do telejornal. O Pai dizia que aquilo não era música e levava-me ao gira discos para ouvir ópera. "L'elisir d'amore", "Madame Butterfly", "Turandot", "Le pecheur de perles", "Parsifal", "La Traviata". Gostava sempre de 2 aberturas no entanto e um intermezzo. Todos de ópera italiana. O coro dos escravos da ópera "Nabucco". O retrato pungente dos escravos hebreus na Babilónia, que, dizem ter sido o tiro de partida para a reunificação italiana. O pai dizia sempre que o Libretto era outra coisa mais ligeira e menos visceral. A "Aida" também de Verdi, encomendada para abertura do canal do Suez e estreada no Cairo um ano depois. Os pais embevecidos pediam sempre para com lábios redondos assobiar os primeiros acordes da marcha triunfal. E eu seguia ainda um pouco sem saber a beleza esmagadora do caminho...



E o mais belo intermezzo tardio de uma ópera pouco fantasiosa. Já fora de tempo e sem o arrojo dos verdadeiros génios. Mas um bálsamo de alma para ouvir ao sofá, empunhando um copo de balão com Martell Cordon Bleu, na morte de Michael Corleone na Sicilia natal no menos bom 3º momento de "O Padrinho", ou a caminho de uma degustação no douro enquanto o motor do Alfa Romeo não aquece...



Um dia talvez me chamassem para assobiar a marcha triunfal na estreia da "aida" da temporada de opera no La Scala ou no Metropolitan Opera House... Talvez no La Scala, em Milão certamente que a Aida e o Radamés chegariam ao foyer e a caminho dos camarins saídos de um exuberante Alfa Romeo 2600 Sprint Zagato, ou de um exótico Alfa 90 V6 Quadrifoglio Oro... Um dia... assobiando de lábios redondos no La Scala antes da "Aida", ou no "La Fenice" depois do intermezzo da "Cavaleria Rusticana"... que inocência, que ilusão...

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Acabava-se o ensino e a escola primária. Finalmente. Foram longos anos de apenas 4. Havia um sentido estético na vida em geral. Já fazia as minhas escolhas de forma autónoma. Já não precisava de perguntar tudo a toda a gente. Era "grande", ia para o ciclo preparatório. Disciplinas de uma hora com intervalos entre elas. Professores sem canas, réguas e demais artefactos. Matemática, Português, Educação Visual e Educação Musical. Tão bom. O professor de Educação Visual era pintor e andava de carros velhos. Talvez fosse pessoa de poucos recursos, seria? Quando chovia vinha de Lancia Fulvia 1.3 azul, quando ensolarava vinha de Alfa Romeo Spider 2.0 S3 versão americana com injecção SPICA.

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Andava sempre cheio de desenhos com uma mala à tiracolo atafulhada de papéis, e com um bloco Canson debaixo do braço. Viajava muito, faltava bastante. Mas era diferente de todos os outros que andavam de Triumph Acclaim, Fiat Regata, Toyota Corolla ou Citroen AX. Tinha longas entradas no cabelo loiro e usava bigode e barba. Por vezes trazia companhia no Spider. Tinha pinta. Parecia não ter lugar específico e de ser um pouco de todo lado. Pertencia-se, não era de ninguém. Iria a Itália várias vezes por ano de certeza. Que inveja... Iria de Alfa Spider? Atravessando a meseta espanhola de capota aberta, petiscando com uma amiga na Costa Brava, entrando com a frente do carro cheia de insectos na Riviera Francesa, Cannes, Nice, Mónaco, e depois por Ventimiglia passando por Sanremo para o festival, Portofino, Cinque Terre de Monterosso até Riomaggiore, a pianura padana a 180 em 5ª de Lucca a Florença. Tocava Sax alto, e usaria certamente chapéu escuro, camisa azul e calças caqui com sapatos vela sem meias e blazer sport. Tocaria Bird de Charlie Parker num club de Jazz nocturno com amigos e faria uma visita ao veleiro de um amigo como Ripley.

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Iria a Roma comprar arte e tirar uma fotografia com pintores na piazza navona... seria um epicurista certamente.

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E quando chegasse de férias, as aulas e os alunos seriam apenas um interlúdio entre viagens e a pintura. Passavam por si sem tocar. Mas seria ele a tocar uns quantos, e um deles eu certamente...

(continua...)
 
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Miguel Gomes Dinis
(...)

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"Um poema é sempre um círculo à volta de qualquer coisa"

Sophia de Mello Breyner Andresen


Diz-se que coincidência é a mão de Deus quando quer permanecer incógnito. Coincidiu ontem a celebração do centenário de nascimento de um capricho de Deus. Da maior poetisa portuguesa. Das maiores de sempre. A maior em mim.

Vagueando pelos salões do museu Andresen, e o meu pequeno infante ali parado, aguardando os primeiros acordes da orquestra que iria acompanhar a "menina do mar", escutando os sons que os versos fazem ao abrir, sabendo que já fui assim, e que sempre houve qualquer coisa à volta da qual circular e ser poema, viajei de novo. Viajei para trás.

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Alfa Romeo é poema. É arte em movimento. É a roupa com que me visto por dentro. Sempre fora.

Vou perdendo a nitidez que o tempo vai esbatendo dos Natais de província… dos matizes e cores dos enfeites foleiros do pinheiro, e do rugoso tacto do presépio enfático no canto da sala esconsa de cheiro a cera e canela, do televisor singer a preto e branco no leito da madeira escura, da mesa de traços indefinidos, dos atoalhados profusamente decorados por motivos natalícios de arroz de quinze, de mãos engelhadas que distribuíam sabores e aromas para a ceia, de receios infindos que a certeza me impunha e que transitória me abria a soberba e a ânsia de um dia maior. E a noite era grande antes de começar…mas sempre muito pequena e triste, ao som dos estilhaços dos embrulhos rasgados ao canto da sala, depois de quebrada a epifania dominada pela opacidade de um mistério que já passou.

As mãos engelhadas que nos serviam seriam as mesmas que nos afagavam depois da missa do galo e sempre elas que nos preparavam o leito para dormir. Mas essa seria a noite grande do dia seguinte…não mais a que passou depois da fé dos adultos, da gula dos doces e da revelação dos presentes. Era a noite de um tempo novo até ao natal seguinte, perfumada pela morte lenta do carvão das braseiras, e aberta à luz de uma rua escura e um quarto velho que juntos faziam o palco do meu aconchego. Era o durante de um repasto depois da euforia da partida e o desalento do regresso. Era o prenúncio de fim de festa, do apagar das iluminações do pinheiro, do abandono da mesa ao restolho da roupa velha, das rabanadas que sobraram e as nódoas que a toalha aparou de um jantar de colosso.

Dela chegava o presente maior. Uma garrafa vazia de vinho fraco chamado "Gatão".

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Daqui partiu uma noite inquieta. A primeira imagem gráfica de infinito. A garrafa tinha um rótulo cujo gato transportava uma mesma garrafa com esse mesmo rótulo... que por sua vez tinha uma garrafa com esse mesmo rótulo... que tinha uma garrafa com esse mesmo rótulo... que tinha uma garrafa com esse mesmo rótulo.

A noção de limite e finitude ganhou uma dimensão maior que a vida. O tempo e o espaço podiam viver olhando para trás, mas também podiam avançar à velocidade da luz olhando para si no futuro, num momento presente olhando para o que já passou. Obrigado Einstein.

O tempo, o único domínio que o homem à data não controla. O tempo ia dar-me o espaço de conduzir um dia um Alfa Romeo. Estava um lá fora num pequeno espaço de um representante de província. Uma sala pequena apenas com um carro e um foco apontado de cima para baixo. Um 164. Nesta altura somos mais condescendentes com aquilo que é novo, mesmo já tendo noção que o que ficara para trás era bem melhor. Mas o tempo, naquele ou outro espaço poderia dar-me as duas coisas. Talvez um Giulia Sprint GT 1600 com diferencial Colotti Giallo Ocra para sair ao fim de semana, e um 164 Rosso e saia grigia para usar de fato completo à semana. Se morasse em Roma poderia ter aquelas matrículas pequeninas que diziam Roma antes dos números...

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Mas eu não morava em Roma. O Natal da província que hoje não tenho é saudade. Tempo que passou. Dias que já foram, e foram sem voltar. Ocupam o lugar da memória que hoje olhamos pelo ombro sem poder viver. A cerimónia e ausência de protocolo eram intimamente repetidos e repetíveis, ano após ano, e assistiam perenes, velhos como troncos de Carvalho resistindo em memória ao que mudara nos fiéis. De nasciturnos a crianças, de crianças a pequenos rebeldes, adolescentes a adultos…os adultos envelhecendo, anciãos fenecendo deixando vazios lugares à mesa, e novas presenças de cariz conjugal, de primas que casaram em Lisboa, e por lá ficaram, exibindo desconcertantes exultações de júbilo junto dos maridos que me aborreciam, ou de segundos casamentos com fulanos reciclados por eloquentes elucubrações de circunstância oferecendo à ceia a banalidade de estranhos que ditam ao tempo um lugar de saudade. E..."a saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora"...

O dia seguinte era a desmaterialização do encanto da consoada. Era a ressaca das ruas desertas, dos cafés vazios e ocupados de improbabilidade, das notícias de jornal e da ânsia de um fim de ano no Funchal, do dourado do fogo sobre os paquetes ao largo da baía, de mulheres de longos vestidos de tons pastel e homens de smokings de bom corte, do regresso a casa depois do almoço de cabrito, do destino dado aos víveres para os que regressavam, da eminente saudade dos que esperavam até às próximas festas, dos castiçais devolvidos à cristaleira, e de uma percepção opiácea tolhida pela banalidade de um dia comum. O dia do senhor era tão imaterial como a véspera do dia seguinte. Repetiam os comensais os excessos da consoada, repetiam o denodo as cozinheiras de afabilidade costumeira, repetiam-se histórias de outros Natais e as exéquias ao passado, repetiam-se os desejos de dias melhores e os lugares comuns que os idosos profetizavam, repetiam-se as tentativas de serenar os hábitos mais exaltados de uns, de estimular a apatia de outros e de ocultar ascos de estimação à guisa do nome de um espírito que, diziam, abençoado e redentor dos melhores costumes, como que fazendo da época um lugar de boas maneiras.

Já vivi tempo, mas sem viver nele. Já era "grande", mas pequeno para maiores ambições. Regressava ao Porto no banco de trás do Lancia Dedra, olhando pelo quadrado do encosto do banco da frente. Já tinha feito as pazes com as escolhas do pai, pelo menos já tínhamos chegado a Itália nas 4 portas de cor cinza de uma pequena berlina familiar agradável à vista mas pobre de alma, ao som de Phillip Glass de um rádio Pioneer atirado por 2 pares de colunas fajutas.



Eram só 90 cv de um íntimo sereno e tranquilo, embalado pelas subidas em segunda e descidas em quinta da serra do Marão. A terra dura transmontana de Miguel Torga,...

"Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!"

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Porque é que o pai não deu mais um passo decidido e... o primo 155 era um caixotinho do studio I.DE.A, mas fazia lembrar tanto o V6 do DTM. Mas fazia lembrar tanto, que de tanto o fazer foi tema de prosa numa mesa de operações.

A curiosidade de criança e uma ama pouco diligente tinham deixado marcas. Foi só uma tomada de parede e dois dedos de alguém nascido há pouco para a vida. Recordação não existe do episódio, mas ficaram marcas na mão direita para lembrar e para corrigir antes da puberdade por indicação do pediatra. A puberdade estaria já ali ao virar da esquina, e eis que levado à sala de cirurgia plástica correctiva de uma clínica da cidade do Porto, após o adormecimento pelo que depois viera a saber ser um barbitúrico classificado de tiopentato de sódio, e como potentíssimo catalisador do ponto de vista desinibidor, acordado horas depois já de mão ligada e sorriso de médico apoiado na beira da cama articulada. O que teria dito afinal durante o acto? Devia embaraçar-me, envergonhar-me, esconder-me?... Aparentemente teria dito Nicola Larini e Alfa Romeo incessantemente. Talvez cruzado pela imagem disto, e ao som do V6 ironicamente PRV, enquanto alguns de máscara à minha volta faziam o serviço na mão direita de uma qualquer sala de cirurgia de uma qualquer clínica da cidade do Porto...

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(continua...)
 
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Miguel Gomes Dinis
(...)

Passou o tempo de criança, a meninice breve na ânsia de ser adulto. Passaram as lentes foto gray, os chumaços largos nas sedas e cambraias finas da senhoras de posse. Passaram as gravatas berrantes que os senhores traziam ao peito, os bigodes fartos, as calças largas de linho e estopa. Passaram muitas ondas do mar frio da Póvoa, as pedras grossas do areal, os calções de cores e os entretens de praia.

O mundo já não era só meu, era nosso. Nosso dos amigos para a vida, da miniatura do 155 V6 TI do Larini numa troca de prendas com colegas da escola. Dos primeiros despertares, cores, cheiros, risos e sabores das raparigas nas férias de verão. Da Ana, loira de calções curtos da turma de economia... eu era de artes, e não sabia vencer a barreira temerosa de avançar com diálogo com a menina da outra turma, quanto mais da outra área. Os primeiros vislumbres de barba despontam na pele outrora imberbe. A Ana olhava e ria com as amigas no corredor da escola. Eu também olhava e ria com os meus, confiante nas All Stars cravadas num raid pelas lojas da baixa aos avós, na camisa aberta e t-shirt comum, nas Levi's 901. Mas...estaria a rir-se de mim, ou a rir-se para mim? Deveria abeirar-me e rir-me também juntando uma piada de circunstância?

Faltava tanto ainda para os 18 anos. Caso contrário e de carta na mão, prémio de boletim de totoloto dos pais e certamente não enjeitariam o facto de lhes pedir um Alfa Romeo 916 GTV V6 turbo acabado de sair,... preto. Gostamos de tudo preto naquelas idades. Ou então um intemporal Bertone 105 como o do Steve McQueen. Ou talvez Um Alfetta GT dourado para conduzir como Al Pacino no infame "Bobby Dearfield"...

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Certamente a impressionaria com as minhas habilidades ao volante. Gostaria de música de certeza, tantas vezes nos verões de Sábado à noite soltava os longos fios de cabelo dourado ao som da música à entrada do Twins. O que deixaria a tocar no rádio? Logicamente acharia os meus trechos, sonatas, nocturnos e árias profundamente aborrecidos e decadentes. Do que gostaria a Ana? Qualquer coisa mais moderna, pop e actual que me fizesse exaltar aos seus olhos? Que lhe fizesse agitar a anca sentada no banco do passageiro ao meu lado de sorriso aberto e dentes alvos alinhados em rigorosa simetria, olhos que furam o azul da alma e saia curta... Mas como concorrer com os mais velhos de botas, casaco de couro preto e Aprilia RX50 estacionada no pátio da escola? Era toda uma bagagem que esmagava, que oprimia qualquer tipo de intenção de cor clara e tom harmónico que povoava os meus sonhos mais doces...

As aulas corriam lentas de hora a hora. Os intervalos exasperavam-se nas horas sempre que a Ana não estava, mas aceleravam fundo quando rasgava o horizonte de olhar azul, cabelo loiro e saia curta. Quando não aparecia o mundo desabava em fragmentos ásperos, duros, frios, vítricos. Estaria doente? Teria saído com o rapaz da mota abraçada ao couro preto no lugar detrás da Aprília? Provavelmente não porque no intervalo seguinte depois da lenta agonia de uma qualquer aula de química lá estava sorrindo para mim,... sorrindo de mim, ou rindo de mim. Não interessava, o acto físico de abrir a boca de dentes brancos dirigida a mim com olhos que picam cobria a dúvida. Talvez risse para mim... Talvez risse de mim. Que bom seria que ríssemos os dois de alma pura, de curva em curva numa estrada do Douro, de árvores tensas na berma e asfalto liso no chão onde pudesse acelerar o V6 Busso com todo o talento cativo nas mãos, temperado nos pés a três pedais como um Steinway de orquestra...

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Chegado a casa dia após dia. Livros e cadernos na mesa do hall, de caminho para o quarto com um posters a preto e branco de Nino Farina num 159B com a cabeça de lado, um Brabham BT45 Alfa Romeo de flanco e Gilles Villeneuve em deriva de traseira num Ferrari 312T5 com o número 12, e o pobre Jean Alesi no Ferrari 412 T2, mãos 10 para 2 no volante redondo que abria horizontes ao mais empedernido tifoso depois da vitória no Canadá. Tirava-os todos pela Ana. Arrancava-os um a um. Fazia uma composição de cada gesto seu em seus lugares na parede. Não chegariam os espaços de 4 empenas brancas para cobrir todos os gestos, posições, sorrisos, intenções, esgares, olhares e trejeitos que dela tinha gravados na memória.

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Música...punha música. Gershwin para animar as sombras que permanentemente me invadiam a alma. Rhapsody in Blue...



Depressa passava para um Adagio em G Menor de Albinoni para vestir por dentro escuro como pensava...



...como depressa voltava a Gershwin ou animado pelo dia e soma de sorrisos trocados num intervalo breve me abria embalado ao torpor da minha folia...



...como voltava de novo ao frio e às sombras de um qualquer lugar soturno e pouco melódico abraçado pelo "Concierto de Aranjuez".



(continua...)
 
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OP
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Miguel Gomes Dinis
(...)

E a Ana desapareceu, de umas férias de verão para o outono seguinte. Com ela levou o azul cortante dos olhos, o loiro dourado dos cabelos. Em mim ficou a sombra e a saudade daquilo que não foi. A angústia naquilo que fica daquilo que passa. A necessidade de expurgar pecados de alma. De viver aquém do tempo e além do espaço. Partira com o fulano de mota, ou com um dandy de origem estrangeira. Passou.

E com a inexorabilidade do tempo, e o limbo estranho de uma adolescência decadente, chegava a faculdade. Mais amigos e novos. Mais experiências. A oportunidade de viver vida própria para além dos seus condicionalismos. Abandonar definitivamente as vestes de criança, experimentar com convicção as vestes de adulto em potência. Mais música. Mais cinema. Mais passeios vagabundos pela noite ao som dos meus silêncios. A carta! A carta de condução! Alfa Romeo 156, carro do ano 1998.

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Assim. Blu Nuvola, Lusso, com jante 15. Até podia ser o 1.6.

Já nem o pensava para mim. Lá por casa estava para se trocar de carro, seria desta?

Até que para mim viria um dos motores da minha liberdade. Uma extensão do corpo para além da distância que quisesse. Finalmente um...

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...Fiat Panda 750 CL. Rosso Corsa. 4 Velocidades, um consumo de aparador de canteiros, 0 aos 100 em... muito tempo. Velocidade máxima, era mínima. O comportamento dava chumbo com processo disciplinar, o barulho era um desafio a ouvidos em fim de vida, e o conforto talvez fosse melhor que um tractor em plena faina agrícola. Resultado,... apesar de estar longe daquilo que queria fiz laços bastante fortes com a criatura. Era italiano e fazia lembrar as praças de Roma e Florença apinhadas de scooters e carros pequenos (ainda) italianos mal estacionados.

Levou-me ao fim do mundo se ele não fosse longe. Desceu à ribeira para me ver desenhar. Encheu-se de muitos amigos, algumas amigas, pouca família e nenhum problema... não fosse o gigler mínimo entupir mais do que um sistema vascular em fase de enfarte (agora é que o @João Luís Soares me excomunga...). Os italianos sabem ter charme, mesmo quando fazem uma coisa de propósitos limitados. Tenho saudades...

Aprendemos já demasiadamente tarde para ser cedo que a espera para o desejo é longa, mas que os atalhos para o passado são infinitos, porque intangíveis para lá da... memória.

O 750 viveu o tempo que alguém achou que merecia, até que um dia finalmente chegou...

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...o pior carro que alguma vez tive. Melhor dizendo, foi coisa que eu nunca gostara desde o primeiro dia. Foi uma ferramenta de trabalho que se colocou no caminho e serviu exclusivamente o propósito de transporte. Levou pouco que contar.

Levou que me lembre a um fim de ano com aquela que me prendeu de imagem, que me recordava os olhos mediterrânicos e cabelo d'ouro da Ana sem ser ela. De vestido preto para uma noite de gala, sugerindo que o modesto francês não seria digno da nossa companhia para o Reveillon e talvez pudéssemos fazer-nos circular pela prole com outros pares de rodas que estivessem disponíveis em casa. Eu pensava que o modesto francês não era digno da minha companhia o ano inteiro, mas apenas por desdém. A pesporrência de circunstância esbarrava na minha observação de princípio. Não enjeitaria a que fossem os acessórios a dar volume ao meu tamanho. A meia noite demorou a chegar. Algo mais que me atormentava e emergia à superfície, de entre vozes loquazes de um dia incomum. Dia 1 de Janeiro decidiu, a custo, sermos novamente só os dois. Eu... e o mal amado Renault. Voltámos sozinhos para casa. Ao som de "Ombra mai fu" de Handel. A forma de uma árvore por Cecilia Bartoli.



Foi talvez o único dia que nos correspondemos.

(continua...)




 
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João Luís Soares

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(...)

E a Ana desapareceu, de umas férias de verão para o outono seguinte. Com ela levou o azul cortante dos olhos, o loiro dourado dos cabelos. Em mim ficou a sombra e a saudade daquilo que não foi. A angústia naquilo que fica daquilo que passa. A necessidade de expurgar pecados de alma. De viver aquém do tempo e além do espaço. Partira com o fulano de mota, ou com um dandy de origem estrangeira. Passou.

E com a inexorabilidade do tempo, e o limbo estranho de uma adolescência decadente, chegava a faculdade. Mais amigos e novos. Mais experiências. A oportunidade de viver vida própria para além dos seus condicionalismos. Abandonar definitivamente as vestes de criança, experimentar com convicção as vestes de adulto em potência. Mais música. Mais cinema. Mais passeios vagabundos pela noite ao som dos meus silêncios. A carta! A carta de condução! Alfa Romeo 156, carro do ano 1998.

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Assim. Blu Nuvola, Lusso, com jante 15. Até podia ser o 1.6.

Já nem o pensava para mim. Lá por casa estava para se trocar de carro, seria desta?

Até que para mim viria um dos motores da minha liberdade. Uma extensão do corpo para além da distância que quisesse. Finalmente um...

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...Fiat Panda 750 CL. Rosso Corsa. 4 Velocidades, um consumo de aparador de canteiros, 0 aos 100 em... muito tempo. Velocidade máxima, era mínima. O comportamento dava chumbo com processo disciplinar, o barulho era um desafio a ouvidos em fim de vida, e o conforto talvez fosse melhor que um tractor em plena faina agrícola. Resultado,... apesar de estar longe daquilo que queria fiz laços bastante fortes com a criatura. Era italiano e fazia lembrar as praças de Roma e Florença apinhadas de scooters e carros pequenos (ainda) italianos mal estacionados.

Levou-me ao fim do mundo se ele não fosse longe. Desceu à ribeira para me ver desenhar. Encheu-se de muitos amigos, algumas amigas, pouca família e nenhum problema... não fosse o gigler mínimo entupir mais do que um sistema vascular em fase de enfarte (agora é que o @João Luís Soares me excomunga...). Os italianos sabem ter charme, mesmo quando fazem uma coisa de propósitos limitados. Tenho saudades...

Aprendemos já demasiadamente tarde para ser cedo que a espera para o desejo é longa, mas que os atalhos para o passado são infinitos, porque intangíveis para lá da... memória.

O 750 viveu o tempo que alguém achou que merecia, até que um dia finalmente chegou...

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...o pior carro que alguma vez tive. Melhor dizendo, foi coisa que eu nunca gostara desde o primeiro dia. Foi uma ferramenta de trabalho que se colocou no caminho e serviu exclusivamente o propósito de transporte. Levou pouco que contar.

Levou que me lembre a um fim de ano com aquela que me prendeu de imagem, que me recordava os olhos mediterrânicos e cabelo d'ouro da Ana sem ser ela. De vestido preto para uma noite de gala, sugerindo que o modesto francês não seria digno da nossa companhia para o Reveillon e talvez pudéssemos fazer-nos circular pela prole com outros pares de rodas que estivessem disponíveis em casa. Eu pensava que o modesto francês não era digno da minha companhia o ano inteiro, mas apenas por desdém. A pesporrência de circunstância esbarrava na minha observação de princípio. Não enjeitaria a que fossem os acessórios a dar volume ao meu tamanho. A meia noite demorou a chegar. Algo mais que me atormentava e emergia à superfície, de entre vozes loquazes de um dia incomum. Dia 1 de Janeiro decidiu, a custo, sermos novamente só os dois. Eu... e o mal amado Renault. Voltámos sozinhos para casa. Ao som de "Ombra mai fu" de Handel. A forma de uma árvore por Cecilia Bartoli.



Foi talvez o único dia que nos correspondemos.

(continua...)


Quase me sinto mal a responder a tão eloquente prova com tão mísero palavreado, mas cá vai:

Um dia matas saudades. O meu é preto, mas de resto é igual. O teu era de que ano?
 
OP
OP
Miguel Gomes Dinis
Quase me sinto mal a responder a tão eloquente prova com tão mísero palavreado, mas cá vai:

Um dia matas saudades. O meu é preto, mas de resto é igual. O teu era de que ano?

Era de 89. Troquei-lhe a grelha da frente pela última versão porque me fazia lembrar a primeira (que estupidez...). Foi ao alentejo no pino de verão, furou o radiador e levou com um ovo escalfado lá para dentro das mãos de um autóctone alentejano. Fez o resto da viagem para cima com o ovo colado no furo sem se queixar. Para que saibas, a minha avó chegou a ter em anos distantes do início desta história um Fiat 124, lamentavelmente não era a familiare e era a segunda série (muito mais feia que a primeira). Fazia-me lembrar uma versão depurada do Giulia, do qual até tinha algumas afinidades quanto ao esquema de suspensão (atrás), e trazia-me à memória o avvocato Agnelli a entrar demasiadamente ligeiro no Lingotto ao volante do 125 azul, a quem, como se sabe, o Luís Represas veio a dedicar uma música sua.

Quanto à tua proposta aceito, no dia em que aprenderes a ligar o cabo de bateria do GT e fizeres o serviço que te compete.
 

João Luís Soares

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Portalista
Era de 89. Troquei-lhe a grelha da frente pela última versão porque me fazia lembrar a primeira (que estupidez...). Foi ao alentejo no pino de verão, furou o radiador e levou com um ovo escalfado lá para dentro das mãos de um autóctone alentejano. Fez o resto da viagem para cima com o ovo colado no furo sem se queixar.

Então era igual ao meu, tirando a cor.
O meu já foi ao Alentejo no Verão, fez mais de 1000 km por lá e não furou nada.

Para que saibas, a minha avó chegou a ter em anos distantes do início desta história um Fiat 124, lamentavelmente não era a familiare e era a segunda série (muito mais feia que a primeira). Fazia-me lembrar uma versão depurada do Giulia, do qual até tinha algumas afinidades quanto ao esquema de suspensão (atrás), e trazia-me à memória o avvocato Agnelli a entrar demasiadamente ligeiro no Lingotto ao volante do 125 azul, a quem, como se sabe, o Luís Represas veio a dedicar uma música sua.

Se calhar até era da terceira série, mas isso discutimos quando (ver abaixo)

Quanto ao Luís Represas, gostei da piada.

Quanto à tua proposta aceito, no dia em que aprenderes a ligar o cabo de bateria do GT e fizeres o serviço que te compete.

Assim seja. Combinamos um dia e encontramo-nos lá no covil.
 
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